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Depois de descer do
Renault Captur conduzido pelo pai, Jardes Whoosvertz olhou com melancolia para
as colinas geladas ao longe no começo daquela fria manhã de inverno.
O jovem rapaz não queria deixar sua cidade,
teria gostado tanto de viajar para uma ilha do caribe com sol e diversão. Mas
seus pais arruinaram suas férias, depois do acidente eles se preocupavam tanto
com sua condição. Um tempo nas montanhas geladas lhe faria bem, lhe dariam um
momento para pensar, para respirar ar puro...
Os pais o conduziram para a
aconchegante cabana da família, eles queriam que Jardes descansasse, mas ele
estava bem, na verdade louco por adrenalina.
Pobre garoto, sua memória era uma
bagunça total, não se lembrava de quase nada dos últimos cinco anos. Suas
lembranças eram apenas do hospital, dos rostos nebulosos das enfermeiras e do
Dr. Guiddes, que acompanhou seu caso por todos esses anos.
“Eu estou bem ferrado,” pensou Jardes
amargamente. “um homem sem memória é um indigente sem passado, um maldito livro
que molhou e perdeu sua história. Ao menos parte dela.”
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Depois do almoço
Jardes saiu para caminhar, jurou para seus pais que lembrava perfeitamente
daquela região, como prova, falou dos pinheiros altos e do castelo em ruinas do
Sr. Meditavrades Hebbs que havia sido engolido pelo pântano.
“Não demore muito, Jardes. Pode
nevar bastante no fim da tarde”. Avisou-lhe sua mãe. A pobre coitada tentava se
apegar à sua beleza de outrora, mas tinhas sinais marcantes de cansaço e
angústia por conta de seu filho e dos momentos ruins após seu acidente.
“Eu volto logo.” Mentiu Jardes dando
as costas à sua mãe e descendo rumo ao lago congelado que ladeava o caminho
estreito que conduzia ao Vale do Silêncio.
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Os pais de Jardes
diziam que ele tinha sorte de ter escapado com vida do acidente, mas havia todo
um trauma no seu cérebro que demorou longos anos de tratamento. Segundo eles
suas memórias dos últimos cinco anos haviam sido perdidas para sempre como um
sonho esquecido.
Jardes caminhou por entre árvores
congeladas e uma fina camada de neve que cobria a grama sob seus pés. Estava
bem agasalhado e a sensação fria lhe era agradável.
Em um gesto mecânico ele tirou o
celular do bolso e quando viu a data sentiu um arrepio na espinha. No visor de
seu smartphone marcava: 31 de Outubro de 2022.
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Era Halloween. Ele
gostava da tradição, ver filmes de terror, comer doces, curtir festas com
fantasias... mas não hoje, naquele fim de mundo havia poucos vizinhos, ele não
lembrava de nenhum jovem por perto, e o sinal de internet era fraco para
assistir vídeos.
Aquele seria um Halloween perdido...
-Ahhhh!!! - O pensamento de Jardes
foi interrompido por um estranho grito de horror vindo do alto da colina.
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Assustado diante do
grito esganiçado, Jardes guardou o telefone no bolso e correu em direção ao
grito.
-Socorro... – Jardes subiu um
pequeno morro escorregadio ladeado de árvores e pôde enfim descobrir de onde
vinha aquele grito.
Um calafrio gélido como dedos de um
esqueleto o fez estremecer quando ele avistou a lendária caverna da Bruxa.
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“Como isso é
possível?” indagou Jardes fitando a entrada escura da caverna. Desde criança
ele ouvira as lendas na região sobre aquela caverna onde haviam prendido uma
bruxa maligna.
Os
velhos moradores do local falavam da Bruxa Krovíkobba, um ser do mal, possuidor
de conhecimentos nefastos e detentora das artes das trevas. Contavam que ela
tinha mais de 300 séculos.
“Matar
uma bruxa é um erro” diziam os moradores, “pois que seu espírito imortal volta
do além para se vingar, por isso ela foi presa na caverna maldita onde sua feitiçaria
nefasta não tem poder.”
Quando
se preparava para fugir dali e ir avisar seus pais para que ajudassem a pobre
mulher, afinal Jardes jamais seria crédulo o bastante para quer em bruxas imortais
de 300 séculos, ele ouviu os arbustos se mexerem.
Tinha
alguém ou alguma coisa, vindo em sua direção, talvez atraído pelos gritos.
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Os
olhos de Jardes foram tomados por surpresa quando viu a linda garota de gorro
vermelho sair da trilha e caminhar com leveza em sua direção.
-Não
é possível, mas como? Indagou Jardes ao fitar aquele rosto que te trouxe tantas
memórias. A garota correu e o abraçou, beijando-o ternamente nos lábios.
Aquela
era Jarohazika, sua doce namorada há cinco anos.
-Eu
segui vocês, quando descobri que você saiu da clínica, eu precisava te ver.
Seus pais não queriam, então estive dirigindo atrás de vocês. – Contou
Jarohazika emocionada. -Você prometeu me amar para sempre, lembra?
-Ahhhhh!!!-
Novamento o grito irrompeu de forma medonha pela garganta escura da caverna.
Os
enamorados decidiram adiar o momento romântico, Jardes ligou a lanterna do
celular e juntos, foram em direção ao grito horripilante de socorro.
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Jardes
murmurou para sua amada sobre as lendas da bruxa velha, e ela sorriu, dizendo
que era a bruxa do Halloween.
Jardes
tropeçou em algo e viu que havia um machado no solo irregular, ele decidiu
pegá-lo para se proteger caso encontrasse alguma fera devorando a velha.
Os
gritos haviam cessado, mas eles ouviam uma respiração irregular, como uma
ronqueira asquerosa.
Seguiram pelo estreito caminho que fazia uma
suave curva para a esquerda e então a luz do celular iluminou o fundo da
caverna e algo peculiar.
-Oh!
Eu não acredito no que estou vendo!! – Gritou Jarohazika apertando a mão de
Jardes que segurava o machado. -Isso é...?
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-É
a velha bruxa...! – murmurou Jardes incrédulo diante da visão de uma mulher
muito idosa sentada no chão com uma das pernas quebradas e o osso saindo para
fora da pele que sangrava. Ao seu lado havia uma tocha apagada e uma picareta.
-Oh!
Vocês vieram. – Gritou a velha exibindo seu sorriso velho e tentando disfarçar
a dor. - Ajudem-me!! Depressa!!!
-Mas...
– Jardes pensou em questionar se ela não era a bruxa má que havia se soltado e
queria ajuda para se vingar, mas quando viu Jarohazika correr para ajudar a
pobre senhora, foi junto.
Quando
Jarohazika colocou o braço da velha em seu pescoço para ajudá-la a se erguer,
Jardes estremeceu.
-Carne fresca- murmurou a velha lambendo seus
lábios secos e com uma mordida forte, cravou seus dentes no pescoço de
Jarohazika, fazendo-a gritar de dor.
Jardes
ficou paralisado ante a cena macabra iluminada pela trêmula luz de seu celular.
A
velha arrancou um bom pedaço de carne da jugular de Jarohazika, fazendo seu
sangue vermelho brilhante jorrar enquanto a anciã mastigava sua carne
suculenta.
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-Nãooooooooooooo!!!
Berrou Jardes como um animal, deixou o celular cair, ergueu o machado, correu
na penumbra até a velha e deu-lhe um belo golpe, fazendo seu crânio rachar como
uma melancia cortada.
Enfurecido,
Jardes não se contentou com apenas um golpe e começou a picar a velha
compulsivamente, desmembrando-a e fazendo seu sangue borrifá-lo como água suja
que vaza de canos furados.
-Oh!
Meu Deus!! – O rapaz ouviu o grito de voz familiar e foi banhado por uma luz
forte em suas costas. -Por que você fez isso Jardes?
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Sujo
do sangue que escorria pelo seu rosto e pedaços de cérebro que lhe caiam dos
cabelos, Jardes se virou para encarar os pais.
A
luz da grande lanterna do pai feria os olhos de Jardes, ele ergueu seu braço para
se proteger. Então disse-lhes:
-A
bruxa, - apontou na direção de Jarohazika, -ouvimos o grito e viemos ver quem
estava em perigo, mas a maldita bruxa atacou Jarohazika, ela...
Sob
o olhar de dor dos pais Jardes se sentiu confuso quando percebeu que sua amada
Jarohazika não estava na caverna.
-Onde
ela foi? – Gritou Jardes e foi contido pelo pai que tirou-lhe o machado
ensanguentado das mãos e o abraçou. -Me larga, ela foi mordida, precisa de
ajuda senão ela vai... ...morrer...
-Oh! Meu filho se acalme – implorou a mãe com
lágrimas rolando por seu rosto cansado. – Jarohazika não está aqui, ela morreu
há cinco anos.
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-Isso
não é verdade, eu a vi, ela estava aqui comigo, ela nos seguiu de carro e veio
para ficar comigo, então a velha...- gritava Jardes desesperado sentindo suas
forças se esvaírem enquanto pedaços de memória faiscavam em sua cabeça criando
um mosaico sinistro com corpos e rostos tristes.
Jardes
desfaleceu nos braços do pai enquanto as memórias regressavam à sua mente,
exatamente como quando se recorda de um sonho no meio do dia.
-Eu
me lembro de tudo... – Balbuciou Jardes fazendo sua mão soluçar de horror. -Eu
sou um assassino!! Eu matei meus amigos e... Jarohazika foi minha última
vítima.
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Jardes
Whoosvertz, um jovem de 15 anos com um futuro brilhante pela frente, filho de
pais ricos donos de muitas lojas de departamento, mas que tinha desejos
estranhos.
Um belo dia, há cinco anos, Jardes
estava com seu melhor amigo Gremuller preparando sanduiches na cozinha de sua
casa. Seu amigo estava distraído jogando no celular, quando Jardes pegou a faca
de cortar carne e ao invés de fatiar o presunto para o pão, decidiu espetar aquela
bela lâmina de aço no pescoço do garoto.
Em poucos minutos a compulsão
transformou sua linda cozinha em um matadouro salpicado de sangue e carne
fatiada. Mas isso não era um problema, Jardes era bom em limpeza e sabia onde
jogar os corpos, no poço na velha mina abandonada, afinal em suas fantasias
aquele seria o lugar ideal para desova.
E assim o jovem carniceiro dizimou
seus seis amigos durante quase dois meses até que sua mãe achou a cabeça de
Jarohazika em uma caixa de isopor com gelo em cima de um guarda-roupas no
quarto de Jardes.
Ricos, os Whoosvertz ajudaram a
encobrir tudo e pagaram rios de dinheiro ao Dr. Guiddes, um amigo da família de
longa data e que garantiu limpar a mente de Jardes, apagando suas lembranças da
matança e curando-o de sua psicopatia. Ele estava trabalhando em uma tese sobre
curar assassinos em série.
Mas o fantasma do passado sombrio de
Jardes encontrou uma forma de ressurgir dos porões de seu inconsciente.
-Socorro, me tirem
daqui... – Agora eram os gritos de Jardes que ecoavam do interior sombrio da
caverna onde seus pais o prenderam com grossas correntes nos tornozelos, as
mesmas que supostamente prendera a bruxa má. Eles sabiam que não poderiam curar
seu filho homicida.
Os Whoosvertz precisavam do Dr.
Guiddes, era necessário encontrar um jeito de tratar Jardes. Eles não aceitavam
aquele destino tão cruel.
Os Whoosvertz haviam recolhido os
pedaços da velha que Jardes havia trucidado, era uma moradora da região que
gostava de procurar pedras preciosas em cavernas e túneis, diziam que ela
sempre achava alguma pedra azul ou pepitas de ouro.
Como sempre mais uma cena de crime
adulterada com as provas do assassinato apagadas. Jardes estava limpo de todo o
sangue, sua mãe havia cuidado dele.
Jardes sabia que eles iriam retornar
para ceda-lo e leva-lo de volta para o Dr. Guiddes.
Jardes estava perdido, teria que
passar novamente por toda aquela lobotomia, afinal ninguém ouviria seus gritos
de horror.
Mas então quando Jardes começou a
ter um ataque de ódio tentando se libertar ele viu uma fraca luz brilhar na
escuridão da caverna.
-Eu não acredito. – Sorriu Jardes ao
perceber que seu celular estava caído em uma pequena fenda na rocha.
Rapidamente Jardes tirou os sapados
e se esticou todo, conseguindo alcançar o smartphone com os dedos. Ele o puxou
para si, verificou que tinha sinal, fraco mas tinha e ficou feliz por ainda ter
bateria.
Jardes procurou na agenda e achou o
número de Clementorres, um dos velhos moradores da região que sempre estava a
disposição para ajudar os conterrâneos.
-Alô...
-Olá Sr. Clementorres, será que o
senhor poderia me ajudar? Eu vim explorar a caverna daquela lenda da bruxa com
uns amigos e eles me prenderam aqui, preciso de ajuda com algemas e correntes.
Aqueles miseráveis me pagam, matarei os dois assim que sair daqui. Ha, ha,
ha...
-Não se preocupe meu Jovem, chego aí
em cinco minutos. – Assegurou-lhe o velho do outro lado da linha.
Um sorriso frio brilhou no rosto
pálido de Jardes. Ele sabia que teria sua vingança. Matar a velha havia
reacendido aquela fagulha gelada em seu peito.
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