Escrito
por ALLAN FEAR
-Você não viu a
Nenzinha por aí não, velho? -Indagou dona Marianita, parando na porta do
alpendre e encarando seu velho esposo cadeirante que fumava um cachimbo e
parecia perdido em seus pensamentos. A luz amarelada de um pálido sol já se
pondo banhava sua calvície deixando sua pele rosada.
-Ela finalmente se acertou com o José e se foram! Rê, rê,
uma hora dessas já devem estar trepando num motel barato. A coisa já pegou fogo
ali na rua mesmo, sabe?– Falou Firmino entre uma tragada e outra daquela fumaça
venenosa que roubava aos poucos a escassez de vida que ainda lhe restava
naquele corpo decadente.
-Como assim velho? Me conta essa história direito! –
Ordenou dona Marianita indignada, aproximando-se do velho e abanando a mão
direita sobre o rosto para dissipar aquela fumaça fedorenta.
-Bem...- começou Firmino, interrompido por pigarros e uma
tosse asmática, então continuou:
-Nossa neta Nenzinha, estava na esquina como de costume
com aquele shortinho enfiado na bunda e a barriga à mostra, mexia no celular quando,
de repente, o José apareceu, galanteador como sempre, mas dessa vez parecia de
porre, sabe? E chamou ela de gostosa, dizendo que ela parecia uma puta vestida
daquele jeito e jogou uns trocados nela para que trepasse com ele.
-Então Nenzinha ficou fula da vida, pegou uma garrafa de
vinho vazia que estava jogada na rua e deu com ela na cabeça dele, o vidro
quebrou, José tentou agarrar a menina à força, então ela meteu a garrafa quebrada
e cheia de pontas na garganta dele, que caiu agonizando no chão. O sangue
esguichava de sua jugular que nem o Luizinho espremendo ketchup no cachorro
quente.
-Então a pobre da Nenzinha se deu conta do que tinha
feito e tentou fazer umas ligações no celular, acho que estava chamando uma
ambulância, não sei dizer. Mas aí eu, inválido sem poder fazer merda nenhuma,
fiquei só observando, e vi José se levantar, meio grogue, cambaleante, e juro
por essa luz que está me iluminando, ele meteu o dente no ombro de nossa neta,
arrancou um grande pedaço de carne, mastigou e engoliu. Depois abraçou Nenzinha
e ambos rolaram no chão, ele mordia ela como se estivesse faminto, enquanto ela
gritava por socorro, mas esse pedaço nosso é deserto, aí não apareceu ninguém.
-Olha velho, isso não pode ser verdade! Você deve é ter
pegado no sono ou tem maconha nesse cachimbo, que coisa mais absurda!- Falou
dona Marianita, incrédula, estudando a fisionomia de seu esposo, que parecia
convencido de tudo que acabara de relatar.
-É verdade velha! O sangue e os pedaços da garrafa ainda
estão lá na esquina. –Firmino apontou com seu dedo enrugado e trêmulo. -Então
Nenzinha se acalmou e deixou José comer ela, eu digo com a boca mesmo, sabe? E
depois de uns minutos eles se levantaram e saíram rua abaixo, meio cambaleando,
parecia que haviam se acertado.
Dona Marianita ficou horrorizada ao evidenciar a cena de
crime, o sangue coagulado sobre o asfalto salpicado de cacos de vidro, então a
pobre mulher correu rua acima aturdida em busca de sua neta.
O velho pé na cova dirigiu a cadeira de rodas até a sala
e ligou a TV, colocou mais fumo e acendeu seu cachimbo ansioso por mais algumas
tragadas.
-A cidade está em
alerta geral, - dizia o apresentador do telejornal urgente, mostrando cenas
de violência ao fundo - as pessoas estão
se atacando, simplesmente surtaram e se tornaram canibais. Tudo aponta para um
terrível apocalipse zumbi.
-Rê, rê, - sorriu o velho pé na cova, tossindo e sentindo
o gosto de sangue na boca cuja dentadura chacoalhava a cada pigarro. -os tempos
mudaram mesmo, na minha época mal podíamos pegar na mão da moça, hoje em dia,
além de andarem praticamente pelados, essa mocidade não se contenta com beijos,
tem que comer um pedaço do outro com boas dentadas e ainda engolir. Onde vamos
parar? Rê, rê, rê...
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