Escrito por ALLAN FEAR
CAPÍTULO
1
O sol queimava em um
céu azul límpido. Passava pouco do meio-dia, a correria no centro da cidade
seguia estressante, transito engarrafado e motoristas apressados que não
economizavam nas buzinas.
-Cara, eu ferrei aquele bosta- dizia Rodrigo, um jovem de
21 anos, para seus dois colegas encostados na parede branca ao lado de uma
agência bancária, de frente para a praça da São Devormu. –O filho da puta
sempre chegava bêbado em casa e brigava com minha velha, mas neste fim de
semana ele quis botar a mão nela.
Seus dois colegas, um rapaz conhecido como Pedrosa, alto,
de pele clara, mas bronzeada pelo sol, ouvia os relatos, enquanto segurava
algumas correntinhas douradas e prateadas de metais vagabundos e oferecia a
quem passava. Ao seu lado, uma garota, a quem todos chamavam de Lora, tragava
um cigarro e brincava com o piercing na língua, prendendo-o entre os dentes.
-Era domingo a noite, saca?– falou Rodrigo gesticulando,
seu semblante estava meio distorcido num misto de raiva com frustração, mas
salpicado de um certo assombro. –Eu estava jantando, aí ele já chegou
reclamando e de repente ele pegou a minha velha pelo pescoço e ergueu o punho
fechado, cara ele ia arregaçar a cara dela.
-O sangue ferveu e eu puxei ele, caímos os dois, eu tava
com a faca de serrinha que cortava o bife, aí eu furei ele até botar suas
tripas pra fora. Foi que nem linguiça saindo da maquina no açougue, saca?
-Pô Rodrigo, mandou bem- elogiou Lora, cumprimentando-o
com seu melhor aperto de mão. –Mas e aí o que quê pegou depois?
-A velha mandou eu dar no pé até a poeira baixar, aí
pensei em passar uns dias com você prima. Você sabe, eu posso ajudar nos corre.
-Tamo junto velho, - murmurou Pedrosa em sua voz áspera,
fitando Rodrigo com aquele olhar de malandro e cumprimentando-o. –Família da
Lora é sempre bem-vinda na nossa comunidade morou?
Rodrigo agradeceu, exibindo seu sorriso torto, de dentes
encavalados e encardidos.
Mentir se tornara tão fácil, ele sabia fazer com emoção,
às vezes até chegava a acreditar em suas mentiras. Ele queria ter matado o pai,
queria mesmo, mas não era forte, ou mesmo corajoso o suficiente.
Rodrigo tentava ser durão, sabia que precisava disso para
sobreviver nas ruas desde que largou a escola e decidiu vadiar.
Ele tentou mesmo deter o pai quando este estapeou sua
mãe, mas o homem era mais forte e o ameaçou com uma peixeira. Rodrigo ainda
sentia o pequeno furo que a faca lhe causara uns centímetros acima do umbigo. O
pai lhe falara tanto, um belo sermão, e jurou que o abriria como um porco. Era
difícil duvidar, pois estava com uma faca pressionada em sua barriga,
penetrando em sua pele lentamente.
CAPÍTULO
2
A mãe implorou para que o pai o deixasse ir e Rodrigo
ficou paralisado pelo medo, se borrando todo, sem reação.
O homem pensou por um instante, com a faca na barriga de
Rodrigo, e o libertou, cuspindo-lhe ameaças amargas, afinal era o único da casa
que trabalhava e achava que a mulher e o filho eram suas propriedades.
O pai o libertou e deu-lhe uma hora para juntar suas
tralhas e dar o fora dali, do contrário quando voltasse para o barraco, o
esfolaria vivo.
Rodrigo sabia que o pai tinha uns homicídios nas costas,
já estivera preso algumas vezes, e sabia bem que ele cumpria suas promessas.
Era um homem frio, nervoso e explosivo.
A mãe implorou para que Rodrigo fosse embora, tinha
lágrimas nos olhos. Ela temia o marido, chorava e implorava, mas aceitava ser
espancada, se submetia as suas fantasias sexuais doentias.
Rodrigo juntou algumas tralhas e deixou o barraco onde
morava, descendo o morro da Vila na calada da noite quente de verão.
Rodrigo sabia que sua prima e os amigos dela vadiavam na
rua, roubando, usando drogas e aprontando. Mas que escolha ele tinha? Pelo
menos assim ele descolava uns trocados, pois os 30 reais que a mãe lhe dera não
duraria muito.
Pedrosa usava de suas artimanhas da rua, fingia conhecer
alguns jovens que passavam e estendia a mão para cumprimentá-los, com o intuito
de vender as correntinhas. Era um truque funcional, pois a pessoa olhava para
Pedrosa e ficava tentando se lembrar de onde o conhecia, e isso era a deixa
para fazer o cumprimento e já ir colocando a correntinha no pescoço da vítima,
forçando-a a comprar.
-Qual é a boa de hoje?- indagou Rodrigo, de braços
cruzados em frente ao peito, sobre o blusão vermelho, tentando disfarçar suas
preocupações.
-O lance tá na moral – falou Lora chegando mais perto
dele, -tamo nos esquemas de celular morou?
-Vem com a gente,- chamou Pedrosa, colocou as correntes
que segurava no próprio pescoço e seguiu, com seu gingado de malandro pela rua,
atrás de um coletivo vermelho que parara em um ponto para pegar passageiros.
-Observa- murmurou Pedrosa voltando-se para Rodrigo.
Pedrosa parou próximo ao ônibus, olhando atentamente os
passageiros sentados próximos à janela e viu uma moça loira, aparentando uns 25
anos, com um Smartphone na mão, digitando concentrada no teclado de um
aplicativo de mensagens.
Pedrosa preparou seu bote, olhando ao redor, se certificando
de que não havia policiais por perto ou potenciais ameaças, esperou ouvir o
ruído de ar quando o motorista fechou a porta do veículo e pisou com força no
acelerador. Foi neste exato momento que, impulsionado pela adrenalina, Pedrosa
deu seu bote, saltando e pegando o celular da jovem moça, agarrando-o com sua
mão forte, puxando-o com força.
A moça gritou de surpresa, chamando a atenção dos demais
passageiros, enquanto Pedrosa pousou os pés no chão e começou a correr.
Lora fez sinal com a cabeça para Rodrigo que estava
aturdido e correram para o lado oposto de Pedrosa.
Pedrosa ouviu gritarem: “pega ladrão” enquanto corria
entre os carros, desviando deles. Cruzou uma esquina e viu um policial gordo
atravessar a rua e vir em sua direção.
CAPÍTULO
3
Mas o policial não estava no mesmo pique que Pedrosa, os
poucos passos que dera, já havia acabado com seu fôlego, seu rosto branco e
gordo estava vermelho, minando suor.
Pedrosa desapareceu de sua vista por entre os carros,
dando trombadas em alguns pedestres e cinco minutos depois se encontrou com
Lora e Rodrigo embaixo de um viaduto, na Hollow Street, onde havia muitos
papelões sobre o chão.
Pedrosa chegou e os conduziu por uma boca de lobo para os
esgotos, escondida debaixo dos papelões. Desceram as escadas de ferro e Rodrigo
viu que era ali o quartel general dos vagabundos de Hawthersville.
O local era uma parte desativada dos esgotos,
provavelmente uma obra inacabada, e não passava um canal por ali. Estava seco,
muitas moradas de papelão se estendiam pelo perímetro. Tambores com chamas
crepitando serviam de iluminação. Fogões de lenha feitos de tijolos se
estendiam entre uma morada e outra. Um cheiro de urina com carne assada pairava
no ar.
Outros vagabundos conversavam e bebiam na extensão do
esgoto. Uns riam e dançavam. Outros estavam caídos pelos cantos, provavelmente
de porre.
Pedrosa retirou da cintura e exibiu um grande aparelho
celular de cor dourada.
-O Edu vai pagar uma nota nesse aí!- exclamou Lora
sorrindo e pegando o celular e examinando-o nas mãos. Depois ao devolveu ao
amigo e acendeu outro cigarro, ofereceu um ao Rodrigo, mas este recusou.
-Já que cê tá com a gente, a meta vai ser conseguir uns
10 aparelhos hoje pode crê?- indagou Pedrosa abraçando Rodrigo pelo pescoço,
naquela conversa de manos.
-Pode deixar comigo- assentiu Rodrigo, sentindo um
arrepio gelado percorrer seu corpo. Não era muito bom em roubar, ele sabia que
tinha que fazer o que fosse preciso para sobreviver, mas não levava muito jeito
pra coisa.
No ano passado, com uma turma com quem andava, disseram
que era a vez dele, e tentou roubar o relógio de uma mulher na rua, quando ela
saia de uma loja, era quase final de tarde. Chegou nela por trás, como seus
colegas faziam, e foi metendo a mão em seu relógio, mas não conseguiu que ele
se soltasse do seu braço e a mulher começou a gritar, era uma senhora já na
casa dos 50.
Desesperado pelos gritos da mulher, sentindo as pernas
moles, tremendo como vara de bambu, ele começou a correr e, para seu espanto,
um homem corpulento e alto, saiu de uma loja e veio atrás dele, cuspindo
ameaças.
Rodrigo nunca correra tanto na vida e só conseguiu
escapar depois que quase foi atropelado por um carro, ganhar um dos becos do
morro e subir em disparada.
Depois disso foi muito zombado pela galera e decidiu não
andar mais com eles. Jurou para si mesmo que não iria mais roubar as pessoas.
Mas ali estava ele, sabia que se não ajudasse a roubar
não o iriam aceita-lo no bando. Ele não tinha pra onde ir, não tinha mais
parentes em Hawthersville e sabia que se ficasse sozinho pelas ruas seria
estuprado ou mesmo morto.
Que escolha ele tinha ?
CAPÍTULO
4
Sua tia Rosaura, mãe da
Lora, preparou para eles uma carne bovina com pães dormido. Ele comeu
avidamente. A mulher era uma viciada em crack, morava ali, debaixo do viaduto
da Hollow Street. Era magra e os traços de parentesco com Lora já haviam
desaparecido.
***
Após a refeição saíram os três para a rua. O dia seguia
quente, a temperatura chegando aos 37 graus.
- Vamos para o centro- disse Pedrosa, deu num longo trago
no Derby e continuou –quero ver você agir mano, sempre vamos pra lá nesse
horário. Lá é sossegado e os tiras não aprecem, é dar o pulão e correr pra
casa.
-Não tem erro primo, - começou Lora, abraçando Rodrigo
pelo pescoço, -você dá o bote e corre, até a pessoa se dar conta do que tá
acontecendo cê já se mandou.
-Pode Crê- assentiu Rodrigo, nervoso, apreensivo.
-Aqui nos damos o bote nos balai verde já é?- indagou
Pedrosa.
-Por que os verdes?
-Se liga brow, eu já matutei o lance todo, os move não
abrem a janela, e os verde que passam aqui não tem ar condicionado, aí é manha
dar o bote porque sempre tem um com a janela aberta, distraído no celular.
-Saquei
-É só dar o bote e vazar, é super de boa- falou Lora
dando no primo um soco no ombro de brincadeira.
Os jovens ficaram próximos a lanchonete, Pedrosa
ofertando suas correntinhas vagabundas, então fez sinal para Rodrigo agir
quando viu o ônibus da linha verde parou no ponto.
Rodrigo apreensivo, nervoso, sentindo o misto de medo com
adrenalina invadir seu corpo, lutando contra as pernas que tremiam, olhou, da
calçada, para as janelas abertas do ônibus, e lá estavam três potenciais
vítimas sentadas nas poltronas com as janelas abertas, cada uma com um
smartphone nas mãos. Ele poderia escolher de quem roubar.
A primeiravítima era uma mulher, aparentava uns 45 anos,
estava sentada próxima a roleta do cobrador. Era uma mulher gorda, segurava o
telefone com a mão direita e falava através do gravador de voz.
A segunda vítima era um rapaz jovem, de uns 20 anos,
estava sentado na cadeira mais alta, que ficava sobre as rodas traseiras do
ônibus. Segurava o telefone com a mão esquerda e parecia ler algum artigo.
A terceira vítima era uma adolescente, estava sentada na
última cadeira, depois da porta traseira, e segurava um grande telefone de cor
branca com o logo de uma maçã meio mordida, digitando freneticamente.
Rodrigo sabia que tinha pouco tempo, mas precisava vencer
o nervosismo, pois apenas cinco pessoas estavam embarcando no ônibus e outras
duas descendo.
Precisava ser rápido, e diante da situação, em sua mente,
a terceira vítima parecia a melhor opção, pois uma adolescente não teria força
para segurar o telefone quando ele o puxasse, e como ela estava na parte de
trás do veículo, seria mais ágil pegar e já se distanciar rapidamente do
veículo.
Era hora de agir, o último passageiro já havia embarcado
no ônibus, Rodrigo deu um pique até o veículo, ouviu o ruído de ar quando o
motorista fechou a porta, chegou perto e já ia dar o bote quando a menina parou
de digitar e olhou para ele, com um ar interrogativo estampado no rosto pálido
e delicado.
Rodrigo sentiu a respiração presa na garganta, o ônibus
começou a acelerar, e sem pensar, agindo apenas por impulso, ele usou a mão
esquerda para apoiar na janela e saltou, enfiando sua mão dentro do veículo e
puxou com força o telefone.
A menina deu um grito estridente, agudo, enquanto ele
pousava os pés no asfalto e se preparava para correr, mas o grande telefone
caiu de sua mão, se espatifando no chão.
Rodrigo pensou em pegar o aparelho assim mesmo, mas ouviu
o som das rodas do ônibus derraparem e o veículo parar e abrir as portas.
O coro “pega
Ladrão” explodia de dentro do ônibus, enquanto Rodrigo corria como um
louco. Corria para longe dali, corria enquanto a palavra de seu pai lhe
retumbava na mente: “Fracassado”. A
palavra que ele usava para defini-lo desde sua infância. “Fracassado”.“Fracassado”.“Fracassado”.
CAPÍTULO
5
Rodrigo estava ofegante quando parou debaixo do viaduto
da Hollow Street. O suor lhe minava da testa.
-Que merda cê fez lá cara?- indagou Pedrosa saindo das
sombras, uma carranca estampada na face cinzenta. –cê ferrou tudo seu cuzão!!
-Me desculpem- murmurou Rodrigo cabisbaixo, com uma mão
apoiando o corpo numa das vigas do viaduto, tentando recuperar o fôlego. –A
mina se virou e me encarou, daí tentei pegar o telefone, mas ele escorregou da
minha mão e...
-Esquenta não primo- começou Lora, se aproximando dele,
acendeu um cigarro. –A gente volta lá e consegue meter a fita noutro otário.
***
Passava pouco das 16
horas. O sol começava a mudar de cor, lançando seus raios avermelhados pelas
ruas e prédios. Pedrosa e seus amigos estavam de volta na praça São Devormu,
observando o movimento.
As pessoas passavam apressadas em seus carros ou a pé
enquanto outras, angustiadas, esperavam pelos ônibus nos pontos.
A turma sondava os pontos, quando Pedrosa olhou para uma
das paradas de ônibus do outro lado da rua e viu algo que lhe causou um arrepio
nas costas.
No ponto de ônibus havia quatro pessoas, eram elas: um
cadeirante já idoso com um jornal dobrado repousando sobre seu colo, dois
homens altos, magros vestindo ternos pretos, conversando animadamente e uma
mulher estranhamente magra e de pele muito clara, aparentava ter uns 40 anos. O
que chamou a atenção do marginal foi o grande celular preto que ela segurava
com um desenho de uma maçã mordida na parte de trás.
Pedrosa sabia que aquele celular valeria uma fortuna. Se
não fosse pelos dois homens, com certeza teria o surrupiado da pobre mulher ali
mesmo no ponto, mas seria arriscado. Valia a pena esperar ela entrar no ônibus
e quem sabe tivesse sorte de efetuar o furto pela janela como era de costume.
Entre um cigarro e outro, inquieto, Pedrosa ficou
esperando. Mais adiante Lora e Rodrigo o observavam, já haviam entendido o que
ele planejava fazer.
Não levou cinco minutos para que um ônibus vermelho
aparecesse e a mulher erguer o dedo em sinal para que parasse.
O ônibus parou no ponto, a mulher embarcou, seguida dos
dois homens então o cobrador acionou o elevador do veículo e ajudou o
cadeirante a embarcar também.
Pedrosa viu a mulher magra, de cabelos pretos e ralos
passar o cartão e rodar a catraca, em seguida se sentou numa cadeira ao lado da
janela e retornou a digitar no telefone.
Pedrosa não viu mais nada, como se tudo estivesse
borrado, a não ser a mulher com o telefone na mão, ao lado da janela totalmente
aberta, esperando por seu bote.
Como um felino, Pedrosa andou sorrateiramente em direção
ao ônibus, pronto para dar o seu melhor bote.
CAPÍTULO
6
Quando ouviu as portas do ônibus se fecharem e o ronco do
motor que fez o ônibus começar a andar, Pedrosa deu o bote, pulando na janela e
enfiando sua mão no interior do veículo em busca do celular.
Mas para seu espanto, a mulher, que parecia distraída
numa conversa, afastou seu corpo, colando-se ao encosto do banco, fazendo a mão
de pedrosa passar direto. Mas quando foi puxar seu braço, frustrado pela
astúcia da mulher, Pedrosa sentiu mãos fortes o agarrarem com força.
-Hey!!- gritou Pedrosa surpreso, -Mas que merda é essa?
O ônibus acelerava, ganhando velocidade, fazendo pedrosa
correr para acompanhar o veículo enquanto se debatia, tentando soltar seu
braço.
-Me larga seus merdas!- xingou Pedrosa ao conseguir ver
dois homens abaixados junto aos bancos, ele os reconheceu, eram os dois que
estavam no ponto, vestindo ternos pretos. –O que vocês querem seus viados?
Então Pedrosa sentiu uma fincada no braço, exatamente
como uma agulhada, em seguida uma pressão, estavam injetando algo em seu braço.
Ele berrou a plenos pulmões e rapidamente o soltaram, fazendo ele cambalear no
asfalto para em seguida cair sobre o solo duro e quente.
Lora e Rodrigo o acudiram e o ajudaram a sair da rua.
Pedrosa havia ralado os cotovelos e o joelho direito na queda.
-Mas que porra foi aquela?- Indagou Lora, estudando o
rosto de Pedrosa. –Por que aqueles caras te agarraram?
-Eles me seguraram e me espetaram com uma agulha-
vociferou Pedrosa, estava furioso. Examinava o braço direito, onde no antebraço
havia um pequeno furinho de onde escorria uma gota de sangue. –Tá vendo, olha a
picada da agulha aqui! Essa merda tá ardendo pra cassete.
Rodrigo estava olhando, incrédulo, sem reação.
-Por que eles fizeram isso?- indagou Rodrigo num fio de
voz.
-E eu é que vou saber? Esses filhos da puta do caralho.
-Deve ser alguém que teve o celular roubado e agora tá se
vingando.- falou Lora, pensativa. –Mas foi estranho, parece até que estavam
armando pra gente.
-Vamos pra outro pedaço,- murmurou Pedrosa andando,
procurando seu maço de cigarros nos bolsos da bermuda. –Se eu pegar aqueles
filhos da puta vou fazê-los engolir aquela seringa com agulha e tudo.
***
Pedrosa e seus amigos continuaram a rondar as ruas da
cidade a procura de novas vítimas, mas ele não se sentia muito bem, grossas
olheiras começavam a se formar sob seus olhos, sua cabeça latejava de dor e seu
corpo ardia em febre, estranhos calafrios se espalhavam por sua nuca. Seu braço
direito parecia pesado, dormente.
-Cara você não parece nada bem- disse Rodrigo, encarando
o amigo. –Vamos pro hospital, pra saber o que tinha naquela seringa e...
-Seu bosta- rosnou Pedrosa pegando Rodrigo pela gola do
blusão. –Você acha que os médicos estão se lixando pra moradores de rua? Se eu
for lá é bem capaz de chamarem a polícia pra mim e falar que eu tentei
roubá-los.
-Aqui nas ruas uns cuidam dos outros- falou Lora passando
um braço em torno do ombro de Pedrosa, ajudando-o a caminhar. –Vamos voltar pro
nosso lar. Lá você toma uns comprimidos pra febre baixar e descansa um pouco.
Seguiram em silêncio, Pedrosa estava ofegante, com o suor
minando de seu corpo. Os olhos quase fechados, avermelhados, a pele cada vez
mais pálida. O local da picada no braço inchando como um furúnculo.
O sol estava se pondo, já passava pouco das 18 horas
quando chegaram na Hollow Street e entraram para o subterrâneo do viaduto.
Lora deu alguns comprimidos para Pedrosa, alguns copos
com água e uma sopa. Deixou-o deitado e colocou compressas de pano úmido em sua
testa na esperança de baixar sua temperatura. Depois jantaram ovos fritos com
tomate e beberam um pouco de rum barato sob a luz das chamas que queimavam nos
tambores.
Rodrigo ficou surpreso com a quantidade de moradores que
habitavam aquele espaço. Eram por volta de algumas dúzias, dentre eles homens,
mulheres e crianças. Havia também alguns cães vira latas.
Depois da janta, todos começaram a se aninhar em seus
barracos de papelão e edredom para dormir. Rodrigo ficou num barraco amplo com
Lora e Pedrosa. Era simples, papelões e edredom forravam o chão e a coberta era
um tecido xadrez, igual aos usados em redes de balanço.
Desde que jantara a sopa que Lora lhe dera na boca,
Pedrosa não falou mais, tentava dormir, enquanto o corpo tremia. Lora dissera
que ele iria melhorar, os remédios o deixariam com muito sono e quando
acordasse estaria melhor.
Mas Rodrigo não sabia se poderia acreditar em sua amiga.
Pedrosa estava muito mal. O braço direito estava ficando roxo e tremia
bastante. O local da picada da agulha já
estava inflamado, inchado do tamanho de um pêssego.
Por fim todos já estavam dormindo, exceto Rodrigo, que se
sentia inquieto com a respiração ruidosa de pedrosa e aquele cheiro de carniça
que começou de repente. De inicio ele pensou que algum sem teto estivesse
defecando por perto.
Lora estava deitada em uma extremidade do barracão e
dormia profundamente. No meio estava Pedrosa, deitado de barriga para cima e do
seu lado direito estava Rodrigo.
Ainda havia um tambor com fogo lá fora, fazendo sua luz
entrar por algumas frestas no papelão que servia de parede do barracão,
deixando o local numa penumbra. Rodrigo se levantou, pegou uma garrafa de água
numa prateleira improvisada de madeira e deu duas longas tragadas, ele estava
arrasado com sua situação, expulso de casa, ter de roubar para sobreviver
correndo risco de ser morto ou preso.
Rodrigo guardou a garrafa na prateleira e se aproximou de
pedrosa, tapando o nariz com a gola da blusa. O fedor estava mais forte e
parecia vir do moribundo.
Rodrigo notou que o braço de Pedrosa estava cheio de
bolhas que iam inchando, se tornando cada vez maiores. O braço estava cada vez
mais roxo. Parecia tão grande quanto sua coxa.
Algo estava errado. Isso Rodrigo sabia. Mas o que havia
sido injetado no braço de pedrosa? O que iria acontecer com ele? Será que ele
sobreviveria àquela noite?
CAPÍTULO
7
-Lora- chamou Rodrigo, estudando as bolhas no braço de
Pedrosa que cresciam, atingindo o tamanho de laranjas. –Lora, acorda! Tem algo
errado acontecendo com o braço do Pedrosa.
Ela acordou sonolenta, piscando e cambaleou de joelhos
até o amigo.
-Porra- grunhiu ela tapando o nariz e a boca com a palma
da mão, -Que carniça. Esse fedor...
-Tá vindo do braço, olha- falou Rodrigo apontando para o
braço inchado, de cor roxa cujos caroços não paravam de crescer. –Parece que
vão...
“Bruurffff” Foi
como o som de um peido nojento quando os caroços começaram a estourar,
liberando uma gosma malcheirosa e antes que pudessem protestar, os olhos de
Pedrosa se abriram, olhos vermelhos cheios de sangue, e de sua boca um urro
animalesco explodiu no pequeno barracão.
Enlouquecido de dor, de desespero, com uma dose absurda
de adrenalina pulsando em seu peito, Pedrosa, aos berros ensandecidos, levantou
suas mãos e agarrou seus amigos, puxando-os.
Sua mão direita agarrou no rosto de Rodrigo, enterrando
dois dedos em sua boca e apertando de forma sobre humana, enquanto a mão
esquerda agarrou o pescoço de Lora, estrangulando-a, esmagando sua traqueia.
Os jovens tentaram se libertar, gritando, sufocados pela
carniça putrefata que lhes penetrava pelas narinas.
Mas a força ensandecida da loucura de Pedrosa era por
demais absurda e deslocou o maxilar de Rodrigo, quebrando-o em seguida.
Sua mão esquerda torceu o pescoço de Lora como se torce o
pescoço de uma galinha.
Os outros sem teto arrancaram os papelões do barracão
para ver do que se tratava toda aquela gritaria e se depararam com os corpos
caídos de Lora e Rodrigo, enquanto Pedrosa, agora com uma aparência inumana,
bestial, não apenas com o braço direito inchado, mas todo o corpo, que agora
ganhara uma cor roxa, se erguia enlouquecido pronto para atacar e destruir tudo
a sua volta, berrando ferozmente.
CAPÍTULO
8
Os mendigos, os quatro que haviam acordado, estavam
assustados, tentando entender se aquele horror era real ou se fazia parte de
seus delírios, tentaram contê-lo.
Mas Pedrosa, ou aquela coisa asquerosa em que se
transformara, os atacou de forma animal, mordendo e dilacerando-os enquanto os
furúnculos continuavam a crescer e estourar por todo o seu corpo, liberando uma
estranha gosma que ao atingir outras pessoas queimava lhes a pele, como ácido,
derretendo até os ossos.
***
Parado, nas sombras da Hollow Street, já por volta das 4
da manhã, havia um Volvo preto. O Motorista, um rapaz de uns 30 anos, com
cabeça raspada e vestindo roupas sociais escuras, olhava para o Rolex de ouro
em seu pulso. Estava calmo e sereno. Mascava tranquilamente um chiclete.
Passados mais cinco minutos ele abriu a porta do Volvo e
saiu do veículo carregando uma lanterna. Olhou em volta, a Rua estava calma e
deserta, uma brisa fresca soprava do norte.
O homem foi em direção ao esgoto desativado que ficava
embaixo do viaduto. Passou pelos papelões no chão, ligou a lanterna e sob sua
luz brilhante achou a entrada secreta dos sem teto.
Tirou uma máscara especial que pendia sobre o peito e a colocou
sobre a face. Ajeitou suas luvas pretas de couro nas mãos e começou a descer as
escadas de ferro apoiando os pés e uma das mãos enquanto a outra segurava a
lanterna.
O rapaz chegou ao fundo do esgoto, escuro, silencioso,
malcheiroso e contemplou uma cena macabra, onde dezenas de corpos em putrefação
se espalhavam pelo perímetro. Todos estavam inchados, com a pele completamente
roxa, cheios de perebas e buracos por todo o corpo.
Ele tirou o celular do bolso e começou a fotografar os
corpos, iluminando-os atentamente com a lanterna, dali mesmo, parado próximo as
escadas de ferro. Tirou ao menos uma dúzia de fotos, depois retornou as
escadas, apesar da máscara, o odor de carniça era demasiadamente insuportável.
O homem camuflou a entrada do esgoto novamente e voltou
para seu carro. Deu a partida e acelerou pela Rua enquanto fazia uma ligação.
-Como foi?- indagou uma voz feminina do outro lado da
linha após o segundo toque.
-Um sucesso. Exatamente como se dáquando uma barata
ingere o veneno e volta para o ninho onde morre e mata todas as outras com ela.
-Muito bom- disse a mulher, expressando excitação. –Então
o Projeto K-9 é um sucesso! Finalmente criamos um vírus capaz de eliminar essa
escoria pela raiz. Hawthesville será novamente uma cidade segura.
-Sim senhora. Pelo que pude ver o individuo infectado se
torna agressivo e adquire uma força sobre humana e mata qualquer um à sua
volta. E à medida que o vírus entra no estágio três o individuo infectado
morre. Como o contágio se dá pelo contato com o infectado ou pela inalação dos
gases que seu corpo libera quando os furúnculos crescem e estouram, a
eliminação da espécie se dá de forma bem rápida.
-Maravilhoso!! Você foi ótimo hoje, o plano foi bem
simples e rápido, um sucesso total. Eu quero o relatório completo com as fotos
amanhã até as 11 horas na minha mesa.
O rapaz desligou a chamada. O carro ia a 70 quilômetros
pela avenida deserta. Diminuiu para passar em um sinal vermelho, observando o
cruzamento, quando teve de frear bruscamente ao ver uma garota atravessar na
frente do carro e cair no meio da rua.
-Você está Bem?- indagou o rapaz saindo do carro e indo
verificar a jovem. Quando a viu, percebeu, pela forma maltrapilha como se
vestia, que era uma mendiga.
-Perdeu otário- falou uma voz esganiçada em seu ouvido,
ele se virou e viu um rapaz alto, vestindo uns trapos, apontar-lhe uma faca no
pescoço. –Me dá o Rolex ou te furo seu merda!
-Pode levar- disse o homem entregando o relógio, enquanto
olhava nos olhos do ladrão, como fazem os encantadores de serpentes. –É todo
seu.
O malandro pegou o relógio e ao ver outro carro se
aproximando, saiu em disparada pela rua com sua amiga, até desaparecer numa
encruzilhada.
-Acham que metem medo, que são os donos da rua- murmurou
o homem voltando para seu carro e acelerando-o. –Mas não passam de baratas
prontas para serem eliminadas. Graças ao sucesso do projeto K-9 Hawthersville
será limpa dessa escória em poucas semanas.
0 Comentários